quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Cenopoesia: caminhos pelo hibridismo

Em que ponto a estética interessa à cenopoesia?
Jadiel Lima

Entendemos História em Quadrinhos como uma arte híbrida por ela envolver mais de uma linguagem: a verbal e a imagética. Do ponto de vista da criação, uma história em quadrinho pode ainda explorar referências e estilos de diversas linguagens e áreas de conhecimento, como cinema, fotografia, design e arquitetura.

Por esse motivo, a qualidade do quadrinho depende da desenvoltura de cada linguagem. Não que as linguagens sejam utilizadas de maneira fracionada. Pelo contrário, cada elemento da HQ fica em função do outro para criar algo terceiro: a HQ.

Os textos dos balões ficam mais interessantes se escritos sob medida. Uma palavra a mais ou uma frase sem coesão podem atrapalhar o tempo de uma piada ou prejudicar o andamento da história. Pode ocorrer de a poética dos desenhos não ser comtemplada pelo texto verbal. O domínio da escrita influi bastante.

De outro lado, o desenho e as imagens surtem melhor efeito quando as cores e o sombreamento são bem usados, quando os traços dão naturalidade às personagens e aos “movimentos”, quando a perspectiva não dificulta o entendimento do cenário e os quadros estão organizados de modo a não sufocar o texto.

O conceito de cenopoesia invoca, igualmente, uma ideia de hibridez, mas não apenas em relação às linguagens. Ela é híbrida de gente. Ela só faz sentido mediante vivência compartilhada, num contexto onde cada pessoa contribua com expressão, ideia, voz, corpo, energia.

O hibridismo de linguagens se dá em função do que cada pessoa tem a dizer, seu “repertório humano”, ou seu repertório, simplesmente. Se dá também em função da própria ideia de que as linguagens não existem separadamente.

Esta ideia não é nova. Afinal, tudo não sempre foi assim? O tambor unido a canto e dança, a festa acompanhada de culinária, o teatro cantado fantasiado com máscaras, a pintura na parede feita com as mãos no barro... Indo mais adiante, a escrita, por exemplo, é som e imagem por si só.

A novidade, ou pelo menos o que a cenopoesia propõe é trazer esta ideia à consciência, fazer da arte e da mistura, ação: poema vira poesia na voz, no corpo. A cantiga vira palavra. A imagem é táctil, na roda, na dança, no carinho, nas fantasias.

A cenopoesia é necessária não apenas dentro de seu próprio campo, quer dizer, ela não serve somente a quem reivindica seu conceito e sua prática como tal. Ela serve também como provocação e guia para desvencilhar as barreiras que se concretizaram na arte graças à mercantilização da cultura que separa teatro de dança, música de poema, etc. Barreiras discursivas (de linguagem para linguagem) e sociais: fundamentalmente, “todo ser humano é criativo”, o foco não está mais no produto, mas sim na comunicação, na relação entre as pessoas e das pessoas com o ambiente.

Como seria construir uma HQ dentro deste viés? É comum pensar HQs em novas plataformas (as HQs de Web utilizam linguagens animadas como Gif e áudios), em interação (deixar um quadro ou balão em branco para que o leitor escreva algo). Porém de que forma quadrinistas estão fazendo este exercício do ponto de vista do conteúdo? Por exemplo, fazer um quadrinho documental sobre uma comunidade e convidar pessoas do local a refletir sua história, escrevendo argumentos ou roteiros. O discurso passa a acompanhar um contexto, fazendo-se ação, e o limiar entre artista e espectador fica mais estreito. 

Por nascer no ambiente da arte pública, a cenopoesia não trata de produto. Ela pode ocorrer tendo por base um produto (roteiro, espetáculo, ato-show, livro). Porém não se pretende resultado ou produto final, ela se manifesta e se desenrola a partir da espontaneidade.

Por não ser produto, a qualidade e as preocupações estéticas vão interessar à cenopoesia de maneira diferente do que o corre com uma HQ, por exemplo, num contexto em que a HQ é submetida a avaliação dentro do mercado editorial. A qualidade que, a princípio, importa à cenopoesia está no potencial criativo e reflexivo do ritual ou do ato, em ato. O que se produz é o que fica em cada pessoa, o acontecido e as inquietações, as provocações, os aprendizados para o dia-a-dia conseguinte.

Este valor tem mais importância que o valor da qualidade estética, do ajustamento técnico. A técnica faz sentido se entendida como uma forma de cuidar dos detalhes. Perder os vícios e os maus costumes dentro das linguagens. Caminhar para a simplicidade. Esse desenvolvimento é inerente ao fazer e à necessidade de quem faz de fazer bem. 

Neste sentido o estudo e o esforço pelo aprendizado em cada uma das linguagens de interesse à (ao) cenopoeta. Sem esta desenvoltura, sem essa facilidade para articular ideias, imagens, movimentos, também não há ritual e a intuição, frágil, não se faz intenção. De outro lado, arte com intenção demais e pouca espontaneidade, pouco sentimento, pouca poesia fica rígida e não acolhe – uma contradição, já que a natureza cenopoética é dialógica.

É necessário fazer arte com intenção – canalizar a energia por um projeto coletivo de desconstrução do sistema e construção de novos modos de vida e valores – de maneira intuitiva. 

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